Não sou apologista de se medir a felicidade ou determiná-la com base na posse de bens materiais sejam eles necessários ou supérfluos. Mas na verdade também não sou apologista de se medir a felicidade seja de que forma for. Simplesmente porque não vale a pena medir o que não existe sem ser como conceito. Se meço a gravidade é porque se determinou que se tinha de estabelecer uma força explicativa de fenómenos observáveis. Encontrada a relação entre fenómenos, estabelece-se que a gravidade existe. Ou seja, se sei que X existe ( atracção à Terra ) como objecto ou fenómeno então devo aceitar que existe também um fenómeno ou objecto na base da sua sustentação (força gravítica ) que me pode permitir medir ou estimar X. O problema começa quando eu inverto o processo e realizo o seguinte raciocínio:
Se existe X, então X deverá estar na sustentação de algo.
Um exemplo deste raciocínio é pensar: estou vivo, portanto devo viver - errado. O máximo que posso dizer é estou vivo, portanto algo aconteceu para que tal fosse possível. Depois se quero continuar a viver, essa vontade é um fenómeno em si que tem explicação no que o precede e não no que o procede. Eu não quero viver porque quero fazer algo com a minha vida, eu quero viver porque contenho algum tipo de informação biológica em mim que me faz ter medo de morrer. E se tenho medo de morrer isso não é mais do que um hábito adquirido por uma acumulação de informação genética que me faz reagir repelentemente para com situações que ameaçem a minha integridade física. Onde quero chegar é que os factos só são explicáveis pelos fenómenos que os precedem e não pelo seu aparente "sentido". É na crença do sentido da vida que reside esta doença de interpretar o sofrimento como um "aviso" e não apenas como uma manisfestação de um fenómeno resultante do confronto entre outros fenómenos. É óbvio que posso interpretar uma dor como um "aviso" mas por vezes não me parece muito claro para a maioria das pessoas que ela não tem essa "função". Ela não tem nenhuma função assim como nenhum facto tem nenhuma função, sentido ou significado. A única coisa que um facto pode ter é uma explicação dada por factos anteriores.
Como tal a felicidade é um daqueles conceitos que surge não como explicação de factos mas como objectivização e funcionalização dos mesmos. Tal e qual como o conceito de Deus judaico-cristão serve para projectar no futuro a explicação dos eventos presentes quando na verdade, é óbvio que essa explicação se encontra no passado. Consiste na transposição da experiência pessoal que um humano pode ter ao determinar um plano futuro - de aparente controlo da sua própria vida - para um plano geral de aparente controlo da realidade (da sociedade, para começar). A convicção de que um fenómeno vai acontecer tem um nome muito simples: fé. E a partir do momento em que se percebe que é dela que derivam os actos humanos fica simples perceber que não nos podemos livrar dela. Certos animais agem apenas por impulso. Outros agem por mistura de impulsos e certezas adquiridas ( a que chamo de fé) , como é o caso do ser humano. A única coisa que difere a crença de que Deus existe e a crença de que amanhã o Sol nascerá outra vez é o grau de fé.
Irei diferenciar 5 graus de fé:
Se me apoio na minha vontade para prever um evento preciso da máxima fé (5), se me apoio na minha intuição preciso de bastante fé (4), se me apoio em indução empírica e na minha experiência pessoal, preciso de alguma fé (3), se me apoio em dedução vinda de comprovação teórica (investigação científica) preciso de pouca fé (2), se me apoio em factos nunca disputados (irei morrer um dia, por ex) preciso de tão pouca fé que a considero desprezável(1). O que é comum a todos estes processos é que eu rigorosamente NÃO SEI o que se irá passar no futuro porque eu não posso lógicamente saber aquilo que não existe. Posso inferir. Mas é daqui que surge um risco. A observação sistemática de factos pode levar a confirmação sistemática de previsões e essa confirmação leva também a um crescimento de algum tipo de fé, um sentimento igual ao de qualquer fé, mas de papel diferente. Sinto agora a necessidade de distinguir duas categorias de fé para o efeito. Fé activa e fé passiva. Fé activa é aquela que dividi em 5 graus umas linhas atrás, é aquela que uso para levar a uma previsão ou decisão. Fé passiva é aquela eu ganho com a observação sistemática de factos. Agora definidas estas duas categorias parece-me que a fé activa na previsão de um evento com base em dados científicos é baixa mas a fé passiva que ganho na provável confirmação do evento é bastante alta pois quanto maior for a relação entre uma previsão e um acontecimento maior é a fé que ganho nos dados ou no processo que usei para essa previsão.
Onde é que surge o problema?
É que o conceito de fé que aqui abordo vem sob a forma de um sentimento. E embora eu possa distiguir teóricamente a fé passiva da fé activa isso retrata apenas o contexto em que a fé se manifesta mas que o sentimento dessa fé só por si não determina (como é óbvio, pois esse contexto é exterior ao sentimento). É por esta razão que eu identifico um processo: todas as transições de paradigmas são transições de fé. Mas a fé está cada vez mais forte à medida que o tempo passa porque a acumulamos inconscientemente. Acumulamos o sentimento (passivamente) mas já não precisamos de a utilizar tanto (activamente) e assim ela fica sem objecto, sem papel e nós tendemos a ter cada vez mais fé mas sem saber em quê. Assim cada vez mais cresce esta paixão sem objecto. Estes inúmeros sentimentos deslocados onde a fé é apenas mais um deles ou a soma de vários. Obtemos, através da ciência, formas de recorrer cada vez menos aos sentimentos para "saber" coisas e por isso deixamos estes sentimentos sem aplicação...cada vez mais precisamos de expressar estes sentimentos que se acumulam e cada vez menos precisamos deles para sobreviver (aparentemente).
Por um lado a fé serve para avançarmos, por outro lado serve para nos atrapalhar e nos dar mais vontade de avançar compulsiva e obsessivamente.
Por um lado é graças a ela que chegámos onde chegámos. Por outro lado é graças a ela que chegámos onde chegámos!!!!!
Conclusão: estamos fudidos.
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