segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Moral: uma miragem no deserto da virtude

No outro dia ia a passar na rua à noite, com pressa de chegar a casa, cansado. E deparei-me com uma figura estranha sentada no chão, no passeio. Era um velho vagabundo com um caixote de roupa meio rachado. Parecia triste e um pouco assustado. Por momentos pensei em ajudá-lo a levantar e dirigi-me a ele para ver de perto mas ao mesmo tempo que reparava numas senhoras que conversavam à porta de uma loja, acabei por deduzir que não se passava nada demais e que se as senhoras permaneciam impávidas era porque nada demais tinha acontecido ao velho. Continuei a andar. Só passados uns minutos, já longe, voltei a pensar: "porque estava ele assim sentado que mais parecia que não se conseguia levantar?", "e por que estava a caixa rachada? Teria ele caído com ela na mão?" e de facto, no que restava na minha memória a imagem incomodava-me. Se quis ajudá-lo foi porque fiquei incomodado. Mas em vez de embaraçado e envergonhado com a situação que se presenteava devia antes ter tido alegremente a iniciativa de ajudar o velho para minha própria satisfação mesmo podendo estar enganado em relação ao que se passava. Porque o devia ter ajudado? Porque era o correcto? Não! Porque era o que eu QUERIA ter feito.

Não consegui evitar este debate na minha consciência: "Sê honesto meu caro, se tens orgulho em ti mesmo, o facto de não teres levado a tua acção até ao fim nada tem a ver com seres bom ou mau, com estares certo ao errado, tem a ver com falta de coragem. O que tu tiveste foi falta de coragem e nada mais. O que traíste foram os teus próprios sentimentos e nada é mais caro do que o sentimento no que toca a ética."

coragem: acto do coração
ética: conduta pessoal, carácter

Se eu não sentisse nada pelo velho não acho que o devesse ajudar e se ele se fizesse de vítima e dificultasse o processo para ter mais atenção, influenciando o que eu sentia por ele, não sei se não deveria interromper o processo. Se a ética não é um sentimento, então a ética não é nada. Não estou minimamente preocupado com a realidade do velho (e se estou não devia estar). Não acho que nenhum ser vivo mereça que eu perca o meu sono. Aquilo com que estou preocupado é comigo mesmo e com a minha alegria de viver. A verdadeira empatia para com os outros seres vivos nasce do contacto, da experiência e não da teorização racionalista que leva à dedução dos direitos dos outros. Estamos sempre a combater a nossa própria consciência e não a lutar pelos direitos alheios. Se um dia eu quiser ajudar alguém devo em primeiro lugar dirigir-me a onde esse alguém está ou pelo menos contactá-lo directamente e de seguida devo pedir-lhe permissão. Pois é a minha vontade que quero seguir e não a dele. É a minha satisfação que procuro. É a minha paixão de viver que quero alimentar e nada mais preciso do que combater o que julgo serem insultos e ameaças a essa paixão. Irei desprezar muita gente, irei escolher os meus alvos e não ser escolhido pelas minhas próprias construções. Mas se não É por amor, porque há de SER então? Entenda-se por amor as ligações, atracções, empatias, afectos, tudo isso que por motivos práticos metemos, por vezes estupidamente, no mesmo caixote.

Mas basta pregar essa palavra, o Amor, para que este comece a esconder-se, a desaparecer, a deixar de acontecer como princípio. Depois misturá-lo com bondade, felicidade e finalmente ele é um instrumento e não um facto.

Não me oponho às posições de nietzsche na crítica que faz dos valores metafísicos. Nem me oponho à sua crítica à compaixão. O que eu depreendo dessa crítica não é a proposta de remoção da compaixão pois tal ideia é absurda. Entendo antes como a rejeição da elevação desse sentimento para o papel de valor moral e motivacional.

Quem rouba, mata ou viola não o faz por bem ou mal. Faz por necessidade, loucura ou fraqueza. Tais coisas não se mudam com moralidade. Pelo contrário, podem até ser espicaçadas...


Mas donde me vem esta culpa, esta necessidade de compaixão?
Claro, é a moral cristã.


Vejo muita gente defender constantemente o direito a escolher a sua própria vida. Mas muita dessa gente defende esses ideias como quem se sente obrigado a fazê-lo. Há uma moral implícita que esconde a análise de nós próprios. Estamos-nos a esquecer do resto, que ser livre não tem tanto a ver com escolher a sua carreira ou trabalho. Ser livre consiste em amar o que se quiser e pensar disso o que se quiser. Tudo o resto é quase redundante. Na acção prática pouco há e pouco haverá alguma vez de qualquer coisa sequer parecida com liberdade. Entretanto, cá dentro, no coração, sabe-se lá...Se sou cientista, se sou sapateiro, se sou médico, se sou artista...o que interessa são as condições em que isso se desenvolve. Não é o ideal de vida que interessa. Ele é ao fim e ao cabo, uma distracção do que estamos a sentir. Bom, mas isto é outra conversa. Foquemo-nos mais no outro lado da idealização e da moral, o lado cristão da moral que caracteriza a perigosa ocidentalização do mundo.

Se se descobrir que ao invés dos sentimentos é a moral metafísica a única forma da humanidade se salvar, isso para mim significa que não há nada para se salvar.

Se para salvar os escravos o solução é tornarmo-nos escravos também que raio de salvação é essa? Transformamos a salvação do mundo na nossa danação. O fantasma do pai tirano persegue-nos e fugimos dele em nome de causas elevadas.

Mas este cristianismo implícito dissemina-se ainda hoje por todo o mundo através da globalização com sabor a ocidente. Há moral cristã espalhada pelo cristianismo e pelo Islamismo (uma espécie de cristianismo fiel ao seu próprio messias, ao contrário do cristianismo ele mesmo). A chama que os judeus atearam ainda mal atingiu a sua labareda máxima (admirem-se da Terra Prometida ser mesmo deles). Jesus parece, por vezes, ter sido uma espécie de interferência nessa chama. Mas acabou por ser usado para a atiçar ainda mais. Os cristãos acabam por ser eles próprios, os primeiros protestantes. Eles acabam por, na sua aparente libertação dos sacerdotes judaicos, levar ainda mais longe a sua loucura. O que eles queriam agora era espalhar a palavra que na verdade era dos judeus. A palavra da sublimação dos valores e do não-valor da carne. Queriam espalhar o seu Deus Antinatural pelo mundo, apresentá-lo como verdade de todos, para todos, verdade universal. Agora a conduta tinha de ser tornada espontânea, parte integrante do ser. Se Jesus disse "amem-se todos" pondo em causa o suposto "povo escolhido", agora os cristãos pegavam nisso para dizer que o Deus não era só dos Judeus, era de todos, nem que fosse à força. "Todos iguais perante Deus" - todos em guerra uns com os outros portanto. A decadência em que a Europa (o império romano) se encontrava acabou por contribuir para que estas estranhas seitas se instalassem. Tudo quanto é decadente engole com facilidade a moral cristã. Eis que ao longo da História, a culpa, a redenção, a "pureza", a santidade, a castidade, o corpo místico, a união sagrada do casamento, tudo isto serviu para justificar - "proteger" até - toda a hipocrisia, desconfiança, desprazer, possessão, frustração, vergonha, arrependimento, fingimento, traição, frigidez que houvesse para ser desenvolvida nos povos.

Admiro Jesus de Nazaré por que admiro uma pessoa com coragem mas o que dele veio é doentio. Ele abriu a caixa de pandora que os judeus guardavam e com a qual sabiam lidar ("Não invocar o nome de Deus em vão", é de génio, não é?). Mas ele próprio judeu, não se libertou até ao fim - é muito difícil negar um Deus imaterializado pois não se sabe o que pôr no lugar dele - negou só a instituição e substitui-a pelo Amor. E com isto o pesadelo do nominalismo começou.

Esta disseminação de palavras que eram sentidas no passado mas que agora se tornaram ocas é confrangedora. Este cultivar do Amor redundante do qual, por vezes, também não consigo escapar, este gastar das palavras como forma de encenar os sentimentos, esta Margarida Rebelo Pintice que se cultiva nas massas. Tudo isto resulta em nos privar do pouco que sabemos sobre o que sentimos e vai dar na maior oligofrenia colectiva que se pode conceber. A morte dos sentimentos reais continua o seu caminho.

Venha também então a luta dos gays que também querem "ser felizes para sempre" porque o amor é tão mais do que o sexo. O amor é para sempre... Querem ser reconhecidos como fazendo parte da estupidez geral adquirida que ainda por cima já não anda tão institucionalizada, pois os casamentos diminuem a cada dia que passa e certos governos caminham para lhes dar cada vez menos destaque na lei. Apesar disso, eles querem o direito a essa palavra meio morta. Precisam de montar o seu cabaret reaccionário onde encenam a sua inclusão na vida dos valores conservadores. Só que desta vez já não é a gozar. Desta vez estão a sério. A piroseira chegou aos excluídos do sistema moral, às excepções. E em vez de estes serem a prova de uma existência fora dessas construções morais englobantes, em vez de assumirem uma vida feita de sentimentos fora das convenções sociais, cedem perante a superficialidade institucional. Até a igreja é metida ao barulho. Até a Deus vão bater à porta para lhe pregar a palavra e para ele lhes dizer: está bem. Até Deus fica confuso.

Primeiro tinham sido os protestantes a quererem fazer a "ligação directa" com Deus (E que belo país nos saiu os EUA). O destino já se adivinhava. Muitos põem o paraíso em causa. Já não é preciso. A mensagem essencial já estava de tal maneira incutida que já não é preciso sequer o paraíso. Já nem recompensa é necessária pois a ideia já vale por si. Eis que numa volta pitoresca, o cristianismo é rejeitado porque "não é moral o suficiente". Vai-se a compensação afectiva, os templos, as rezas, as cerimónias. Fica apenas e só, a prática. Porque sim, porque tem de ser. Nega-se o folclore, engole-se a essência. Nem o estado de alma fica. Só o cumprimento.

"A hora da morte não é uma noção cristã"*, dizia Nietzsche. A ligação abjecta à vida, à vida-que-não-pode-acabar é uma visão "abstracta" da vida. É o cristianismo no seu melhor. Cristo tinha de morrer por alguma razão. A sua morte tinha de ter sentido (São Paulo sai-se com a redenção do pecado original). Ele, Jesus, lá foi crucificado mas até hoje ninguém tem real coragem para o enterrar.

E a cultura dos mártires nasce com o Cristianismo. A associação de verdade e causa justa associa-se ao crucificado como herança cristã. Os próprios condenados pelas várias opressões católicas são tratados como jesus pelos sacerdotes judeus. Galileu não se torna mártir. Nada disso tinha a ver com ele ser religioso ou não religioso. Ele era católico devoto. Simplesmente ele é um cientista, é imune a estas questões de princípio. E por tal é chamado por muitos de cobarde, "ele não se comportou como o messias" é o que realmente passa na cabeça dessa gente.

Estamos condenados a viver consoante a satisfação das exigências da nossa "consciência cristã", seja ela secular ou assumida.
Ninguém quer aturar padres pois já está tudo evangelizado. Já estamos prontos para esquecer Deus. Ele já não é preciso. O chão já está cimentado. Ainda há os que julgam que a religião irá desaparecer. Preparem-se, ela está antes a assentar no nosso chão pois até agora era só poeira nos olhos. Ela agora trabalhará espontaneamente sem termos que falar dela. Os religiosos convictos, os padres, esses são os que menos contribuirão para ela pois, sem saber, impedem que ela actue silenciosa e implacavelmente.
Uma religião rigorosa não precisa de Igreja. Cristo nega-a com todas as letras, "O templo de Deus está em vós". Já não é preciso lavar cérebros, eles "aparecem" lavados. Vai-se então rejeitando a religião porque já se aceitou o seu objectivo.

É claro que Bakunin começa por ser cristão. É já quando absorve a ordem-de-destruição implícita no cristianismo que realiza que também deve destruir a igreja e o próprio conceito de Deus. Ele é mais cristão que os próprios cristãos. O fantasma de Kant vence finalmente: "Tu deves, com ou sem Deus".
É no fundo fazer o que Deus manda mas pondo aparentemente em causa a sua autoridade, passando-lhe ao lado. Deus diz : "Faz" e ele responde: "Está bem, mas é só porque eu quero, não é porque tu mandes!"

Assim que ponho em causa tudo isto, não tarda muito até que se apresse uma voz na minha cabeça: "Calma! Espera aí. Mas o que fica quando tiras esse chão? Para onde vais se abandonares este esquema?" e, quase instintivamente, vou à procura de palavras diferentes para atribuír aos mesmos valores decadentes...que me conquistaram pela segurança aparente que já me dão. Procuro a aparente liberdade para me fazer escravo.

Enfim...

Mas talvez eu deva levar a analogia que faço no título um pouco mais além, tentando não ser mais crédulo que os crédulos: se a moral é uma miragem, existe algo na cabeça de quem a imagina que terá a sua razão de ser. E se existe um deserto, existe algo na mente de quem o vê como um deserto e como uma ausência de qualquer coisa. Se desespero por achar que algo não existe, mais não estou do que a esquecer-me que pelo menos o sonho, tal como a miragem, EXISTE, embora porventura, apenas como tais.
Muito provavelmente peco por ser ingénuo se separar os instintos da moral. Se o super ego combate o id, não o fará senão com as mesmas armas com que o id se tenta libertar.

Não obstante, a História tem sido um processo de substituição da coragem pela motivação, do sentimento pela justificação, da vontade pela obrigação.

Porque me preocupo? Posta esta pergunta, julgo que vou a caminho da essência ao procurar uma justificação. O que farei mais não será que encontrar uma racionalização para poder suportar o meu agir não precisando assim de manter o sentimento que deu origem à constatação dessa vontade. O sentimento desaparece, a obrigação começa. A moral substitui a coragem.

Quando se explica ou justifica a virtude mais não se faz do que matá-la.

Ao se pregar a moral, implícita ou explícitamente está-se a matar o que quer que houvesse parecido com ela, a sua realidade, a sua base.

Cada um tem medo da solidão. A moral trata de fornecer o antídoto mais rápido: O sentimento fingido, a vontade encenada. E agora, em vez de uma soma de solidões, somos antes e apenas uma solidão só, colectiva, conjunta, sentida por todos, ignorada por todos.

É preciso que o nosso fundo já tenha sido bem calado para nem sequer aceitarmos a existência de violência e injustiça no mundo. Como se nada fizesse sentido fora dos slogans, das opiniões vazias que passam de mão em mão.
É preciso não sentir nada, não se sentir a si próprio de todo para comunicar através de palavras de ordem, para andar a gritar o óbvio: "acabem com a fome", "paz no mundo". É preciso já não estar vivo para se precisar de ouvir ou de dizer: "eu amo", "eu preocupo-me" como regra, tal não é a "insipidez" no coração.

E assim se as construções morais não foram criadas por hipócritas, pelo menos têm como principal resultado proteger os que são, dar-lhes um lugar na sociedade.

A vontade é hoje um mendigo. A moral é a esmola.

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